19 de Maio de 2020 - Campinas - SP
Como instituição de representação da comunidade discente do IQ/Unicamp, nós, do Centro Acadêmico de Estudos de Química (CAEQ), viemos por meio desta enfatizar o posicionamento a favor do adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) do ano de 2020, bem como dos demais vestibulares.
A propaganda do exame, divulgada no dia 4 de maio pelo Ministério da Educação, mostra uma visão completamente equivocada e desonesta sobre a realidade dos estudantes brasileiros. No vídeo postado, quatro estudantes reforçam a ideia meritocrática que tem como base fazer o esforço dos estudantes a única maneira de vencer qualquer tipo de adversidade. Essa afirmativa não leva em conta diversos aspectos, como a falta do acesso à internet da população, a precarização do ensino no país e as desigualdades sociais.
Segundo dados do IBGE liberados em abril deste ano, em 2018, cerca de 46 milhões de pessoas ainda não tinham acesso a internet, ou seja, quase 30% da população brasileira sequer possui acesso à internet. E sabemos bem que a maioria dos que possuem acesso não necessariamente dispõe de conexão de qualidade. De acordo com o CETIC 2018, por volta de 90% da classe A utiliza computador e internet, enquanto nas classes D e E somente 13% tem acesso a esses meios. Ainda, em meio a pandemia, muitos alunos de escolas públicas e cursinhos populares não têm acesso a internet de qualidade e a livros didáticos, especialmente dado que as escolas, bibliotecas e casas de rede estão fechadas. Assim, temos que o retrato do alunato brasileiro é majoritariamente composto por pessoas sem acesso adequado a saneamento básico, à internet e a estratégias e materiais necessários para a aprendizagem. Porém, o que vemos na propaganda do ENEM 2020 são jovens, em ambientes calmos e organizados, cheios de equipamentos e livros clamando “Estude. De qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet” e “É preciso ir à luta, se reinventar, superar”. Muito fácil dizer isso quando se possui uma infraestrutura adequada e confortável para tal. Torna-se claro que a concentração de renda e a desigualdade social, ambas históricas e crescentes no Brasil, afetam diretamente o acesso ao ensino, mas a situação se agrava pela pandemia de COVID-19 e o ensino emergencial assistido por tecnologias decorrente.
Outros aspectos que não podem ser ignorados são os cortes orçamentários na educação brasileira, em diversos aspectos (financiamento, manutenção, merendas, etc) como uma forma de precarização, tornando muito mais difícil o ingresso de alunos, majoritariamente da rede pública, nas universidades. Ainda, o processo de privatização do ensino público no Brasil existe há anos, ganhando força inclusive no governo equivocadamente aclamado como “progressista” do PT, em que programas como o Prouni e FIES transferem, criminosamente, incentivos a financiamento do ensino público para a rede privada. Isso resultou num aumento abrupto da quantidade de campi, cursos e vagas disponibilizadas pelo monopólio da mercantilização da educação, desviando o acesso a uma educação pública de qualidade e que sirva ao povo. É verdade que houve a tentativa do Reuni, um programa de expansão das universidades públicas federais em direção principalmente ao interior do país, mas a expansão de vagas nesses novos campi não foi acompanhada do investimento em qualidade em tais espaços. Muitas vezes, esses sofrem com precária estrutura e falta de recursos para manutenção de infraestrutura básica, tais quais laboratórios de pesquisa e ensino ou até mesmo energia elétrica. O que temos de concreto, então, é a decisão política do Governo Bolsonaro sobre qual classe deve ter acesso ao conhecimento, às oportunidades de trabalho, às universidades, o que se comprova na fala do ministro da Educação, Weintraub: O ENEM não foi feito para corrigir injustiças, mas para selecionar. Esse discurso sujo do “Estude Mais” e “O Brasil não pode parar” só alimenta a faceta cada vez mais elitista dessas provas de ingresso ao Ensino Superior.
Além de toda a problemática citada acima, neste ano acontecerá o primeiro ENEM Digital. Quando a proposta foi lançada, ela foi vendida como algo inovador e é para o que caminha o Exame Nacional num futuro não tão distante: o projeto é que em 2026 não mais ocorra a prova na forma impressa. Mas já na aplicação piloto, a versão digital não contará com nenhum recurso de acessibilidade, tais como provas com letras ampliadas, tradutor intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), auxílio para leitura ou para transcrição e não será permitido o uso de leitores de tela. O ENEM Digital é um piloto para que o Ministério da Educação estude quais são as dificuldades e os prós de implantar esse sistema na realidade dos alunos brasileiros e, já na primeira tentativa, sem nenhuma justificativa, é negado às pessoas com deficiência a opção de realizar a prova nesse formato “inovador”. Se o objetivo é mapear os possíveis entraves da implementação definitiva desse modelo de prova, sequer considerar PcDs (Pessoas com Deficiência) e suas demandas é mais um passo a caminho do fim da oferta dos recursos de acessibilidade, recursos esses já sofrem de problemas e negligência nas provas do ENEM historicamente. O MEC tem, teoricamente, o compromisso com a acessibilidade e a inclusão, respaldado pela Lei Brasileira de Inclusão, e ele deveria ocorrer em todos os seus meios, seja no formato tradicional ou no digital.
Portanto, fica explícito que é justo e necessário o adiamento da prova do ENEM, bem como de dos demais vestibulares. O vestibular, por princípio, já é desigual e não considera as dificuldades que assolam a grande maioria dos estudantes do povo, mas insistir na manutenção dessas provas meio ao cenário de agudização dessas contradições e da crise sanitária é defender um projeto de educação ainda mais excludente.
Gestão Maré 2020
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